O seminário “Desigualdades estruturais e mercado de trabalho” realizado nesta quarta-feira (10), teve como enfoque a realidade contemporânea do mundo do trabalho e as profundas disparidades ainda presentes nas relações pautadas por questões de gênero e raça. A primeira palestrante, Winnie Santos, trouxe a apresentação “Gênero, sexualidade e e sociedade contemporânea: divisão racial e sexual do trabalho”, na qual traçou um amplo panorama sobre o objeto de suas pesquisas na área. Para a pesquisadora, as desigualdades estruturam o mercado de trabalho.
Ela relatou no início de sua fala que a vivência pessoal atuando em RH e recrutamento numa empresa de callcenter foi uma das provocações que a levou a conduzir esses estudos, justamente por se deparar com situações em que fica nítida a repetição das desigualdades, mesmo com o ambiente relativamente diverso da área, deixando claro que a presença não necessariamente significa a ocupação de espaços de poder.
Ao vivenciar e estudar as relações de trabalho atravessadas pelas questões de gênero e raça, a pesquisadora traz para o centro do debate uma análise histórica e social da conjuntura que propiciou no passado mas que ainda hoje se perpetua, mantendo um cenário abismo no mundo do trabalho. “Quando a gente pensa em Brasil, não dá pra falar em desigualdade social sem pensar em desigualdade racial. Nossa subjetividade (da sociedade brasileira) é estruturada a partir do racismo”, pontuou.
Neste sentido, explica, no imaginário social, a desumanização de corpos negros remonta às raízes do período de escravização no país, em que os africanos trazidos à força como trabalhadores que não recebiam por suas tarefas nada senão o combustível (alimento) e que ao longo de mais de trezentos anos não foram verdadeiramente incluídos na sociedade, nem mesmo após a tardia decretação do fim da escravidão. Esta ausência de mecanismos de reparação e inclusão na estrutura social e no mundo do trabalho manteve a população negra à margem dos direitos e das oportunidades na sociedade brasileira, e, segundo Winnie, ainda existe uma manutenção dessa compreensão de que negros e negras são pessoas com lugares pressupostos (normalmente, a subalternidade) e outros que “naturalmente” não ocupam. Isso se traduz na falta de oportunidades e dificuldades desde o acesso ao ensino, que culminam com a ainda ínfima participação de negros e negras no topo da pirâmide social e do trabalho, numa estrutura profundamente desigual que penaliza de maneira mais grave as mulheres negras.
Em relação à divisão do trabalho na sociedade contemporânea e a disparidade quando se considera a formação educacional, Winnie traz dados sobre as 500 maiores empresas para se trabalhar no Brasil, nas quais posições de liderança são majoritariamente ocupadas por homens brancos, ainda que o grupo com maior nível de formação hoje seja a de mulheres (brancas). “Quando a gente vai falar das desigualdades estruturais do mercado de trabalho, a gente vai falar necessariamente desse lugar de privilégio e desses pactos narcísicos que formam, dessas pessoas que se premiam, se ajudam, se fortalecem”, destacou. Da mesma forma, entre as pessoas negras, o contexto geral e especialmente a pandemia empurram para a informalidade. Winnie destacou um aumento expressivo dessa precarização durante a pandemia entre pessoas negras, abrangendo quase 50% dos trabalhadores e trabalhadoras, que buscaram nos aplicativos e serviços a subsistência. Esses aplicativos, que a classe média acessa, além de poderem se proteger e cuidar da própria saúde com isolamento social, enquanto trabalhadores informais, que precisam pagar pelas ferramentas de trabalho e pelo próprio EPI, não o fazem, por falta de escolha (entre se proteger ou comer). Sobre esse aspecto, a palestrante faz uma provocação: “o quanto estamos produzindo um sofrimento e uma doença física e psíquica a essas pessoas que não conseguem acessar uma forma digna de viver?”
Além dessa realidade, no contexto da ausência de oportunidades para inclusão, Winnie destaca que é preciso “pensar onde estão as pessoas que não estão no padrão de uma sociedade cis/heteronormativa. É como se não existissem outras configurações, outras identidades. Precisamos pensar nos lugares ocupados pelas pessoas invisibilizadas que existem”, ressalta.
Após a apresentação com viés histórico e social, uma análise a partir da perspectiva institucional que influencia no tema. A segunda palestrante do seminário, Barbara Castro destacou em sua fala também o papel do Estado e sua interferência, por ação ou omissão, na manutenção das desigualdades estruturais na sociedade e no mercado do trabalho.
Uma vez que os problemas são conhecidos, sua superação não pode prescindir da iniciativa do Estado, por meio de políticas públicas, para reparar e transformar a realidade. Nesse aspacto, a pesquisadora buscou fazer um resgate dos últimos governos e sua participação ativa em relação às condições de desigualdade e o acesso a oportunidades para propiciar a mobilidade social em sua apresentação “Um retrato da desigualdade de gênero e raça nas últimas décadas”.
Barbara apontou pesquisas que indicam a composição social em diferentes posições do mercado de trabalho, considerando-se os últimos anos e a realidade atual em relação à formalidade, o desalento, a subocupação e a indisponibilidade. Para ela, “a grande questão de investigação do capitalismo da modernidade é analisar o papel que o Estado tem na redução das desigualdades e na distribuição das riquezas”.
Conforme os dados apresentados, no cenário que se apresentava nos anos 90, no contexto de redemocratização e sob governos alinhados ao neoliberalismo, as disparidades sociais levaram milhões de trabalhadores à desocupação, o que provocou aumento expressivo da informalidade, afetando em especial as mulheres. Nas décadas seguintes, houve uma leve alteração na configuração com os governos petistas, influenciada por novas políticas de geração de emprego e renda e conquistas sociais, mas apesar da redução das discrepâncias, as desigualdades se mantém em patamar significativo. Após 2016 e no atual governo, uma nova virada tem levado a um retrocesso que agrava o abismo social, empurrando novamente grande parcela da população para formas de trabalho não regular e sem abrigo da rede de proteção social. Com a pandemia e sucessivas reformas que privilegiam o setor privado somadas à ausência de políticas para mitigar efeitos negativos, a influência do Estado nos problemas no mundo do trabalho no país hoje se dão por omissão e ação.
Barbara também destacou trabalhos recentes com dados atualizados que cruzam informações de relação entre emprego por raça e gênero. Um dos índices com maior crescimento no período recente foi a subutilização, que atinge quase 30% da força de trabalho e cerca de 40% em relação às mulheres negras. A redução da disponibilidade das mulheres foi outro dado destacado. Os números apresentados deixam claro que as mulheres foram as mais prejudicadas no contexto da pandemia. Mesmo entre as mulheres brancas e com maior escolaridade, o acúmulo de tarefas no ambiente privado e a falta de regulamentação das atividades remotas aumentou o número de horas trabalhadas, piorando a qualidade de vida dessas trabalhadoras. Entretanto, foi entre as mulheres negras que a situação de vulnerabilidade e insegurança em relação ao trabalho se agravou mais, especialmente em função ao fechamento de setores em que são maioria, como o de serviços. As formas de trabalho precarizadas, como o trabalho em aplicativos, se tornaram a alternativa para a subsistência a milhões de trabalhadoras e trabalhadores.
Tanto na explanação de Barbara como na apresentação da pesquisadora Winnie Santos, fica nítido que o racismo e machismo são pilares das desigualdades na sociedade brasileira e que a ausência do Estado atuante é decisiva neste processo. Nessa medida, há urgência em se discutir e avançar em mecanismos que ataquem problemas estruturantes, como a injustiça tributária. A progressividade na tributação e a taxação de setor financeiro é apontada como um caminho possível para enfrentar o tema.
O Ciclo de seminários “O futuro do trabalho: perspectivas latino-americanas” é uma realização do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO) da Universidade Federal de Santa Catarina com o Centro de Estudos e Pesquisas em Trabalho Público e Sindicalismo (Fazendo Escola) e tem apoio do Sindicato dos Servidores da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (Sindjus/RS) e Sindicato dos Trabalhadores no Poder Judiciário Federal no Estado de Santa Catarina (Sintrajusc). As atividades têm transmissão pelo canal do Fazendo Escola no Youtube.