Por Ari Schuller*
O fenômeno da violência, que é próprio do ser humano e acompanha-o desde as sociedades primitivas até o mundo atual, traz grandes preocupações e consequências nefastas às sociedades, possuindo manifestações universal e se propaga em qualquer meio social sobre diversas maneiras.
No viés contemporâneo, a violência, por meio do domínio biotecnológico e da tecnologia virtual, abrange novas formas, como por exemplo, a violação da privacidade das pessoas, o cyberbullying e o cyberstalking.
No cenário mundial, percebe-se a evolução de conflitos de guerras civis na última década, tendo o número de conflitos quase triplicado, onde a pandemia do COVID-19 agravou os riscos de conflitos violentos, o cenário político, a violação dos direitos humanos, bem como a ampliação do tráfico e da violência de gênero.
Estudos sociológicos demonstram que o desdobramento da violência interpessoal na sociedade contemporânea, em nível globalizado, é relacionada a desigualdades, como a de gênero, etnia, religião, sexualidade e desigualdade social, e, nesse sentido, as violências estrutural, simbólica, institucional, cultural e epistêmica geralmente atingem determinados grupos com maior incidência, possuindo correlação direta com a intervenção estatal, haja vista que, considerando ser a violência um fenômeno próprio das sociedades humanas, faz-se necessário o controle social pelo Estado, o qual detém o monopólio legítimo do uso da força.
E esse monopólio deve ser pautado nas diretrizes norteadoras de um estado democrático e social de direito, considerando as especificidades que permeiam a formação da sociedade brasileira, sobretudo quanto às diferenças sociais que a caracteriza, em consonância com a garantia da dignidade da pessoa humana e com a construção de uma sociedade justa, livre e igualitária.
O agente policial, nesse contexto, é o representante do Estado e da sociedade organizada, com poderes genuínos e outorgados por eles do uso da força, com a missão da prevenção da criminalidade e a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio, defendendo o corpo social e preservando os direitos fundamentais dos cidadãos, através da manutenção da integridade física e moral das pessoas que o compõem, que não podem ficar refém de arbitrariedades e ilegalidades desencadeadas pelos agentes estatais policiais.
Assim, no Brasil, para o controle da violência social, a segurança pública, seja para o enfrentamento preventivo e ostensivo da criminalidade, seja para a ordem repressiva e investigativa, é constituída por órgãos policiais, instituições independentes entre si, cada qual atuando em seu ramo específico, com deveres previstos pela Constituição do país e pela legislação infraconstitucional.
E para isso, as forças policiais brasileiras compõem-se da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Polícia Ferroviária Federal, das polícias civis, das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares dos estados federativos, além de outras instituições que, igualmente, trabalham no âmbito da segurança pública, como a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), a Guarda Portuária, as guardas municipais, os agentes de trânsito e os agentes penitenciários.
Institucionalmente, às policias militares cabe o policiamento ostensivo, a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas, com atenção especial na prevenção do cometimento de delitos e da manutenção de condições mínimas necessárias a uma conveniente vida social.
Para a efetivação de sua missão e para a manutenção da ordem social, é necessário o uso constante e moderado da força, que deve ser proporcional ao agravo ocasional, todavia sempre pautado na legalidade e na legitimidade.
Por isso, a necessidade de um controle externo das instituições policiais, com a finalidade de verificar e coibir eventuais abusos que podem ocorrer por agentes policiais.
A violência policial no Brasil é histórica e tem ocorrido com grande frequência em nossa sociedade. Necessário, à vista disso, a investigação das causas e maneiras pelas quais ela se manifesta, assim como estudar acerca da legitimidade do monopólio estatal da aplicação da força, do mesmo modo que necessário encontrar as medidas necessárias para o enfrentamento desta violência.
Em relação aos principais atores dessa realidade, imprescindível a percepção deles sobre a (in) segurança em sua área de atuação, assim como sobre o seu envolvimento em vitimação relacionada a suas funções e a prática da violência policial na comunidade onde atuam, a fim de evoluir e proporcionar à população a proteção e assistência que ela necessita.
Em nosso país, o fenômeno da violência é demonstrado diariamente através de formas variadas, principalmente através do tráfico de armas e de drogas, constituindo um elevado número de mortes, uma desorganização da vida social nas comunidades e a relação com os crimes do “colarinho branco” e outras modalidades criminosas, com a influência do histórico de formação sócio racial no Brasil e sua ligação com a violência produzida, a qual é dirigida, principalmente, aos negros e pobres, além da violência de gênero contra a mulher.
Em relação a aspectos influenciadores para a prática da violência, constata-se diversos fatores, como as transformações tecnológicas, ambientais, filosóficas, psicológicas, históricas, políticas, econômicas, culturais e religiosas, tal como a aceleração do progresso e da mudança social, a reconfiguração da importância e de funções de diferentes sistemas sociais, econômicos, técnicos ou políticos, e a transformação técnico-processual dos fenômenos de controle, de vigilância e de manipulação.
Igualmente, constata-se aspectos influenciadores da violência nos referenciais criminológicos racistas nacionais quando da formação do capitalismo e da colonização das sociedades não europeias, através das relações de poder estabelecidas de subordinação, da mesma maneira a influência do neoliberalismo no aumento da desigualdade social.
E quanto à violência policial, além de causas variadas, apura-se associações entre envolvimento em práticas abusivas de policiamento e transtorno de estresse pós-traumático, onde policiais que relataram abuso policial apresentam maiores níveis de exposição ao trauma infantil e maiores níveis de estresse e trauma no local de trabalho.
No que se refere à vitimação dos policiais militares brasileiros no exercício das funções, concluímos que, como ele é o agente estatal mais próximo da prevenção da criminalidade na comunidade, está sujeito a diversas situações de retaliação e de vitimação, como também está exposto a precárias condições materiais de trabalho, juntamente com uma remuneração inadequada, um regulamento interno ultrapassado e uma desvalorização de sua função pela sociedade brasileira, o que é reflexo da nossa histórica divisão de classes em que nos encontramos.
As práticas policiais violentas, seja através de grupos de extermínio ou de milícias, recorrentemente recaem sobre o mesmo perfil de vítimas das abordagens, principalmente no que se refere às mortes ocasionadas pelos agentes, onde a maioria das vítimas caracteriza-se como sendo jovens, negros e pobres, como nos massacres do Carandiru-SP (1992) Vigário-Geral-RJ (1993), Corumbiara-RO (1995), Eldorado dos Carajás/PA (1996) e Diadema/SP (1997), que se perpetuam nos índices oficiais das vítimas dos agentes estatais.
Isso porque o policial militar tem um treinamento voltado para a guerra, por ser uma força auxiliar do Exército brasileiro, trazendo resquícios ditatoriais em sua formação, e está sujeito a todo o tipo de violência e de criminalidade que caracteriza nossa sociedade, o que dificulta o acompanhamento da evolução da sociedade, sobretudo o espírito democrático e em suas liberdades de opinião e de expressão, conquistadas ao longo dos últimos anos, em prol da inclusão da diversidade de pensamento e da pluralidade de estilos de vida que permeiam nossa sociedade.
Por tudo isso, urge a necessidade de uma reciclagem no treinamento dos policiais militares e a constante adequação às novas formas de relações sociais, para a preservação da legitimidade da aplicação da força pelos agentes policiais brasileiros, no âmbito do estado democrático e social de direito, tanto no aspecto da legalidade interna do país, bem como por sua abrangência e limitação pela Resolução 45/166, no Princípio 9, das Nações Unidas, no âmbito internacional.
Em conclusão, confirma-se a ideia de que no Brasil a violência está entranhada culturalmente no cerne da sociedade brasileira, acima de tudo como consequência de nossas raízes históricas, direcionada a determinados grupos excluídos socialmente, o que impõe, necessariamente, uma aproximação das instituições policiais com o rigor do meio científico, a fim de entender as condições em que está inserida, bem como realizar, urgentemente, a implementação de medidas políticas eficientes, com base em diretrizes acadêmicas traçadas, para a prevenção e o enfrentamento do problema, sob pena de perpetuação da violência estatal no país.
* ARI SCHULLER é servidor do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul, Mestre em Criminologia, especialista em Direito Penal e bacharel em Direito