Encontro Antirracista do movimento sindical propõe um enfrentamento coletivo
O segundo dia de atividades do Novembro Unificado Sindical Antirracista iniciou com reverências à ancestralidade e aos orixás. Realizado no Auditório do Sindicato da Alimentação de Pelotas, o encontro reuniu dezenas de trabalhadoras e trabalhadores de diversas categorias e representantes de movimentos sociais para debater a conjuntura, os desafios e perspectivas no enfrentamento ao racismo.
Na abertura, que contou com Pai Baiano de Oxalá e Iyá Sandrali de Oxum, o alabê Jorginho de Xangô tocou e cantou o Hino da Umbanda para celebrar a data (15 de novembro é o dia Nacional da Umbanda), que foi seguido pela sequência de cantos para os orixás, de Bará a Oxalá, acompanhada de palmas do público. O momento espiritual, marcado por muita emoção, foi encerrado com um ponto de Preto Velho, entidade da Umbanda que guarda a sabedoria dos mais velhos.
Representantes das entidades organizadoras do evento saudaram o público, destacando a importância da união e da troca (que eventos como este oportunizam) para o fortalecimento da luta antirracista. O sentimento de luta e valorização da coletividade foi destaque em todas as falas, como a do integrante do Coletivo pela Igualdade Racial (CIRS), Luiz Mendes. “É uma grande alegria ver esse auditório cheio, multicolorido. Essa conjunção de sindicatos e de movimento negro, é um pouco disso que a gente quer para a nossa sociedade, é o que a gente quer em todos os lugares”, declarou.
Resistir e aquilombar
A primeira intervenção teve como tema “Qual a cor da Justiça?” e foi conduzida por Marco Velleda, diretor do Sindjus e integrante do CIRS. O dirigente problematizou a realidade do Poder Judiciário, ainda formado predominantemente por pessoas brancas, em total dissonância com a sociedade. Em relação a trabalhadores e trabalhadoras negras, a exemplo do que ocorre no sistema bancário, a maioria está entre o quadro de terceirizados.
Essa composição afeta a forma como a Justiça é aplicada, sempre de maneira desigual em relação a pessoas brancas e negras. A Justiça, portanto, tem cor, é branca e elitista. Isso se traduz em sentenças precipitadas, alto encarceramento de homens negros, maior dificuldade das pessoas negras em buscar seus direitos judicialmente, quando são justamente as pessoas que mais têm seus direitos básicos negados (como educação, saúde, moradia, saneamento, segurança), sem proteção do Estado. Nesse sentido, é importante reconhecer o papel da Justiça como agente de manutenção do sistema de opressão para lutar pela ruptura dessa lógica.
Para fazer o gancho entre justiça branca e racismo ambiental, tema da palestra seguinte, o dirigente lembrou um caso ocorrido em Pelotas durante o período de chuvas intensas no estado em 2024, em que a administração de um condomínio de luxo, para evitar alagamento interno, utilizou um sistema com um duto clandestino que bombeava água para fora de suas dependências, atingindo uma comunidade pobre, com maioria de moradores negros. “No nosso povo a água pode chegar no teto, a gente pode morrer afogado, mas não pode sujar o tapete deles”, assinalou. E concluiu sua manifestação com um pedido aos participantes: “cada voz aqui, cada presença aqui, tem que ecoar muito mais. Só assim vamos conseguir a mudança necessária que este país nos deve. Temos muitas perguntas, e a resposta é a coletividade, é o aquilombar”.
A conversa sobre o racismo ambiental foi conduzida pela educadora social Michele MCarthur e teve como ponto de partida o desastre ambiental de maio de 2024 no RS. Ela explicou que a expressão “racismo ambiental” foi cunhada nos EUA pelo Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr. na décade de 80 em observação ao despejo de lixo tóxico no condado de Warren, na Carolina do Norte, local de maioria da população negra. No Brasil e mais recentemente no Rio Grande do Sul, a maneira como os desastres e as repercussões deles afetam distintamente comunidades e territórios negros explicita a veracidade da expressão.
Michelle apresentou imagens registradas no mês de maio em diferentes localidades. No bairro Arquipélago, em Porto Alegre, comunidades inteiras ficaram submersas e até hoje estão inviáveis para o retorno das famílias. Não apenas sofreram mais pela posição e condições geográficas, mas pela falta de estrutura, de manutenção preventiva e pela ausência de soluções para os efeitos após as cheias.
O racismo ambiental fala sobre essa disparidade em relação à falta de condições que marca a vulnerabilidade. Assim, as populações mais pobres, em sua maioria formadas por negras e negros, sem direito ao território, à educação, à saúde, ao saneamento, instalam-se em locais de risco e sujeitas a todo tipo de efeitos: “quando a chuva vem, leva tudo pela frente”. Os efeitos são ainda mais devastadores com o agravamento das catástrofes climáticas geradas pelo desequilíbrio ambiental provocado pela exploração desmedida dos recursos naturais, como o desmatamento e as queimadas para atender aos interesses do agronegócio, tudo em nome da geração do lucro e da manutenção do capitalismo.
A educadora pontuou que o tema ainda precisa ser mais explorado, mas à medida em que as catástrofes climáticas tornam-se mais frequentes, o debate ganha visibilidade. Reconhecer a existência desse tipo de racismo como parte integrante do racismo estrutural é, portanto, decisivo para o enfrentamento e a busca de soluções. E nesse sentido, a partilha na coletividade é fundamental para este caminho e para fortalecer a luta antirracista. “Nós estamos num ponto de não retorno, estamos neste levante de coletivos, com essa resistência, essa potência, estamos fazendo do RS um reduto palmarino”, celebrou.
“O encantamento se dá no processo de olhar para o mundo e ver vida”
Na parte da tarde, a professora Cleyci Silva Colins abordou a educação antirracista. Natural do Maranhão, a educadora introduziu sua fala mencionando suas origens e sua descendência indígena. Com os pés descalços, a professora distribuiu aos participantes punhados de ervas aromáticas enquanto falava sobre os saberes ancestrais dos povos originários, que não são devidamente considerados pelo sistema ocidental que baseia nosso modo de viver e pensar.
“O currículo ocidental não prevê o corpo como lugar do conhecimento”, disse, enquanto passava pelos presentes com um defumador onde recolhia as ervas anteriormente distribuídas para espalhar a fumaça perfumada sobre cada participante. A defumação, uma prática da encantaria, tem propriedades terapêuticas e de limpeza energética, um exemplo de saber não colonizado que sobrevive no culto das tradições ancestrais e muitas vezes chamado pejorativamente de “macumba”. Cleyci falou sobre a importância da conexão com a terra, entre as pessoas e com tudo que existe, princípios do bem viver que são preservados nas culturas tradicionais mas desconsiderados no modo de viver ocidental. E pontuou que o resgate e valorização dessas formas de partilha de conhecimento são essenciais para construir uma formação verdadeiramente antirracista.
Ela ainda mencionou os esforços que tem promovido dentro da escola onde atua, na zona rural de Pelotas, para efetivar a educação antirracista, e destacou que o processo deve incluir toda a comunidade escolar. Pontuou também a importância da mobilização para garantir a implementação das leis existentes que determinam o ensino da história e cultura africana e indígena nas escolas. Defendeu a ampliação do debate inclusive sobre a produção do material didático, para contemplar a representatividade nos conteúdos gerais. E destacou a importância de cobrar dos gestores dos municípios a implementação de um plano de igualdade racial. “Se nós não tivermos a capacidade de cobrar um plano, que contemple a educação, a saúde, a segurança, não haverá espaços para pensar o (combate ao) racismo”, apontou.
“Falar sobre finanças deve ser algo nosso também”
Para debater o racismo no sistema bancário, a roda de conversa conduzida pela dirigente do Sindbancários e da CUT/Fetrafi, Isis Garcia, iniciou pela fala da consultora Lislaine Matos, e trouxe aspectos da educação financeira e a posição da população negra nesse contexto. “Quando chegamos ao sistema bancário a primeira coisa que recebemos é elitismo, racismo, má educação e não”, pontuou. E explicou que se propõe a fazer o direcionamento de seu trabalho de educação financeira para as pessoas negras, tendo em vista o contexto histórico e social que criou e perpetuou o racismo e, consequentemente, a privação de oportunidades de viver e prosperar.
Lislaine pontuou o apagamento histórico ocidental, reforçando que “a história dos negros não começou na escravidão” e citando que os primeiros bancos de que se tem registro surgiram no Egito antigo (Kemet), uma civilização altamente organizada e especializada. Ainda sobre reparação histórica, citou o caso das pessoas indenizadas pelo Massacre de Tulsa (EUA), e citando a falta de conexão histórica (perda de referências familiares e sociais) como efeito da escravização, fez uma provocação: “por que não a gente pensar numa grande indenização?”.
Ela reforçou a importância da educação financeira e da segurança financeira num contexto em que as pessoas negras são as que recebem menos e pagam proporcionalmente mais. “Como diz o Nego Bispo, falar de nós perdendo eles já falam, então eu me proponho a falar de nós ganhando, com estabilidade financeira e estabilidade emocional”. Além de orientações e dicas sobre aspectos individuais, apontou propostas para qualificar o sistema bancário, sugerindo inclusive que os bancos ofereçam educação financeira para correntistas e promovam pesquisas com recorte de raça sobre os usuários, pois ainda faltam dados para explorar o tema e propor políticas efetivas.
Isis problematizou o tema destacando o papel dos bancos digitais que aparentemente facilitam o acesso aos serviços bancários, mas culminam na precarização e perda de postos de trabalho neste setor. Além disso, a autonomia do Banco Central também se tornou mais um obstáculo para a melhoria do quadro. “Hoje, nós, bancários, enfrentamos os bancos digitais (fintechs), ninguém sabe as leis deles, nós não sabemos o que vão cobrar, e as pessoas negras estão dentro desse arcabouço, porque não precisa comprovação de renda, não precisa ir presencialmente. Então como implementar ações se o sistema financeiro está se transformando para que não haja nenhuma fiscalização?”.
A atividade também contou com apresentações artísticas do grupo de dança e do Coral do 24º Núcleo do CPERS, com a participação do mestre Griô Dilermando Freitas tocando o tambor de sopapo. Para encerrar com celebração esse grande momento de debates, emoções, trocas e aquilombamento, foi realizada uma festa no Fica Ahí, clube negro mais antigo de Pelotas, com discotecagem da DJ Helô, famosa na cidade por seu repertório dançante repleto de brasilidades que há anos embala os eventos da classe trabalhadora.
A resposta é o aquilombamento
Neste Novembro Antirracista, novamente buscamos resgatar um passado que tentaram apagar. Voltamos ao local onde nossos Lanceiros foram traídos e assassinados para contar quem são nossos heróis e celebrar sua memória.
A história contada nos livros, inventada por brancos e para brancos, invisibiliza a dor do povo negro e a contribuição que demos para formar a riqueza de nossa cultura. Um povo que soube preservar, com muita resistência, seus saberes, sua fé e sua alegria. Que criou raízes fortes e permanentes quando o plano era que sumissem. Que é a cara e a cor do Brasil.
Resistimos à escravização, resistimos à tentativa de embranquecimento do Brasil e resistimos hoje, ocupando os espaços que sempre deveriam ter sido nossos. Juntamos nossas vozes para que ecoem e levem nossa mensagem a todos os cantos.
Mas lutamos hoje para que nossos filhos e netos não precisem mais lutar. Que não precisem resistir e possam simplesmente existir. Para isso, contamos hoje a história que a história não contou, resgatamos o passado para transformar o futuro. Buscamos os nossos e fortalecemos nossos vínculos. Aquilombamos para viver, crescer e prosperar.