Após privatizar e cortar direitos, o governo gaúcho quer agora limitar investimentos públicos no estado por 10 anos
Vendida como a única saída para acertar as contas do Rio Grande do Sul, a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) é a cereja do bolo do projeto de governo de Eduardo Leite (PSDB). Para isso, falta limitar investimentos públicos no estado por 10 anos.
“Isso representa a ideologia da redução do Estado, dos serviços públicos, privatização, desresponsabilização do setor público sobre a manutenção da vida, da saúde, da educação e do desenvolvimento social”, entende o economista Jorge Maia Ussan.
O RRF é um programa federal que permite aos estados refinanciar suas dívidas com a União desde que cortem gastos públicos. Segundo dados do Tribunal de Contas do Estado, o RS já pagou 3,9 vezes o valor da dívida original e ainda deve 7 vezes o valor. A dívida do RS, hoje, é de cerca de R$ 70 bilhões.
Com a adesão, explica Ussan, a dívida não será diminuída, apenas empurra o problema para próximos governos. “O RRF é solução apenas para o governo Leite. A partir de 2027 pagaremos muito mais. Evidentemente isso não será sustentável”, pontua.
Teto de gastos estadual: a cartada final
Desde o início do seu governo, Leite trabalha para efetivar a adesão ao programa do governo Bolsonaro: privatiza estatais lucrativas, corta direitos dos trabalhadores que prestam serviços à sociedade e conclui a reforma da Previdência estadual. Em setembro deste ano, aprovou junto aos deputados o projeto que abre caminho para adesão ao RRF.
Entre as medidas que o governo federal obriga os estados a implementarem para a adesão ao regime está a criação de um teto de gastos, que limita por 10 anos o crescimento de investimentos públicos. Leite já enviou duas Propostas de Emenda à Constituição (PECs) à Assembleia, mas como encontra dificuldades, trabalha para enviar um Projeto de Lei Complementar, de mais fácil aprovação.
“Brasil é o único país do mundo que faz ajuste fiscal na pandemia”
“A possibilidade de adesão a essa proposta que pretende diminuir as políticas públicas, a exemplo da reforma administrativa, no momento pandêmico que vivemos em que mais precisamos da presença do Estado na vida das pessoas, é terrível”, ressalta Fabiano Zalazar, coordenador-geral do Sindicato dos Servidores da Justiça do Estado do RS (Sindjus-RS) e integrante da Frente dos Servidores Públicos do RS.
O Brasil é o único país do mundo que promove um ajuste fiscal em plena pandemia, na contramão do mundo que adota o caminho do reinvestimento público emergencial em políticas sociais. “No plano econômico, os governos Leite e Bolsonaro são iguais. O governo Leite segue a cartilha de Paulo Guedes, o ‘Posto Ipiranga’ de Bolsonaro. Obviamente, Leite não é um negacionista de extrema-direita, mas a sua política econômica é austericida e conservadora”, opina o servidor.
“O exclusivo e único enfoque do governo Leite é o corte de gastos e as privatizações”, lamenta Ussan. “O resultado é conhecido, a economia gaúcha patina e os serviços públicos são precarizados, o que atinge especialmente as camadas mais pobres da população, a maioria que depende fundamentalmente do Estado para suas necessidades básicas.”
Pode piorar
Para Zalazar, o teto de gastos estadual não deve preocupar apensa servidores, mas toda a coletividade. Exemplifica com os últimos cinco anos no país, que mesmo com a PEC federal do teto de gastos, privatizações e reformas previdenciária e trabalhista, vê o aumento da inflação, da miséria e das desigualdades sociais.
“A conjuntura é de milhões de brasileiros e brasileiras vivendo em insegurança alimentar, desemprego e subemprego, fruto dessas políticas predatórias e da extinção de direitos sociais”, assinala. Com a adesão do RS ao RRF, “esse quadro que já vivenciamos no Brasil tende a se intensificar no estado”.
Desmonte sem pudor
O coordenador do Sindjus-RS recorda que o governo Leite vende empresas públicas lucrativas e estratégicas, a exemplo da Corsan, que recentemente teve a sua privatização aprovada pelo parlamento gaúcho, sem que o povo pudesse decidir o destino do seu patrimônio. “Uma estatal que nos últimos quatro anos deixou mais de R$ 1,2 bilhões nos cofres do estado. Já não há mais pudor algum em vender estatais lucrativas.”
O momento é de resistência para preservar conquistas, defende Zalazar. “Ano retrasado, o governo Leite retirou direitos históricos dos servidores públicos estaduais, que no debate público ganham a pecha de privilégios, quando não se combate efetivamente a sonegação e os incentivos fiscais bilionários que aprofundam as desigualdades sociais”, critica.
Adesão ao RRF enterra renegociação
O contrato original da dívida do RS com a União foi muito prejudicial ao estado, afirma Ussan, que também é mestre em Administração pela UFGRS. “Na prática tornou-a impagável”, assegura. Tal situação levou o RS a liderar um acordo com governo federal para renegociação da dívida, durante o governo Tarso Genro.
A proposta aprovada em 2014 permitiu uma diminuição do estoque da dívida, em valores calculados à época, de R$ 22 bilhões até julho de 2028. “Foi graças a essa renegociação que, embora tenha deixado de pagar R$ 11,1 bilhões desde julho de 2017, a dívida no governo Leite ainda assim diminui”, explica.
Porém com a mudança do cenário econômico desde 2015, ficou claro que a dívida gera um esforço fiscal demasiado ao estado. Desde 2017, o estado não paga suas parcelas por força de liminar junto ao STF. “Outra renegociação, ou mesmo ações judiciais, se fariam necessárias. Mas isso governos neoliberais não fazem”, afirma o economista.
Porém a adesão ao RRF enterra a possibilidade de uma renegociação. Na sessão da Assembleia gaúcha que aprovou a adesão, a deputada Juliana Brizola (PDT) frisou que o projeto obriga o estado a abrir mão das ações judiciais que tratam da questão.
Foto: Joel Vargas | Agência ALRS