Ao som de cantos indígenas e com a presença de representantes das lutas sociais e dezenas de servidoras e servidores da Justiça estadual, ocorreu na noite desta quinta-feira (27) a abertura do VII Congresso Estadual dos Servidores do Judiciário (Conseju/RS).
Após seis anos sem a realização do evento em razão das restrições da pandemia, o Congresso, que é o principal instância de debate e deliberação do Sindjus, tem na sétima edição o tema “O Bem Viver e a radicalidade de sonhar outros mundos” e acontece até o 30 de julho no Novotel Três Figueiras, em Porto Alegre.
De forma simbólica de uma das representações do conceito do Bem Viver, a apresentação de canto e dança tradicional do grupo Retomada Gãh Ré, de indígenas da etnia kaingang, abriu os trabalhos do primeiro dia.
O coordenador-geral do Sindjus, Osvaldir Rodrigues, ressaltou que a mesa que iniciou o evento, integrada por representantes de diversos movimentos sociais, representa que a atuação do Sindicato vai para além dos temas exclusivos da categoria. “Não somos um sindicato que pensa somente em suas pautas corporativas, temos também a luta com o movimento social”, destacou. O dirigente ainda fez uma breve análise da conjuntura política e das dificuldades da classe trabalhadora, ressaltando que o Sindjus “não é uma ilha que vive isolada”. “Assumimos nossa responsabilidade como entidade representativa. Acreditamos em um outro mundo possível, em uma sociedade mais justa e fraterna. Lutamos por democracia, participação coletiva e justiça social”.
O início das atividades contou com manifestações de representantes de diversos movimentos sociais, simbolizando o conceito do Bem Viver, que aponta para a necessidade de buscarmos outras formas de organização social e novas práticas políticas.
Veja abaixo as falas:
Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) – Marina Dermmam
“O MST quando luta pela reforma agrária, luta pelo Bem Viver, pois nossa reforma agrária têm caráter popular, para colocar comida de qualidade na mesa do povo, a gente luta por uma reforma agrária para garantir os direitos humanos da população, o direito à vida, à dignidade, à saúde, à alimentação (…) defendemos uma outra cultura de distribuição de terra”.
Quilombo do Areal da Baronesa – Criselen Silva:
“A radicalidade de sonhar outros mundos tá em a gente acreditar no potencial que temos como seres humanos, acreditar na infância e juventude, a lutar por políticas públicas, tá na resistência, que é o que a gente faz hoje”.
Povos Originários – Cacica Iracema Gãh Té, da etnia kaingang
“Nós, como seres humanos, temos que agradecer à noite e ao dia. Agradecer a Mãe Terra, que às vezes sem perceber a gente machuca ela. Ela dá sustento, alimento, água. Agradeço a oportunidade de ter uma fala aqui, coisa que meus ancestrais não tiveram.(…) Peço respeito ao que tá escrito na Constituição, que é o direito de povos originários, que não está acontecendo. Fora Marco Temporal!”
Centro de Educação Ambiental (CEA) – Cris Medeiros
“O Centro de Educação Ambiental (CEA) existe há 27 anos, foi criado a partir de reunião de mulheres, vítimas de violência doméstica que para sair do ciclo de violência iniciaram o trabalho de reciclagem. (…) Unidade da Bom Jesus é uma das mais antigas de Porto Alegre.(…) Impossível falar sobre Bem Viver sem que a gente tenha o olhar para as questões de sustentabilidade.”
Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas – André Luiz Ferraz
“Lutamos pela reforma urbana, pelo socialismo e luta pela moradia, homenageando a história daqueles que foram apagados da história pela elite. (…) A radicalidade é necessária para que a gente consiga uma transformação e passa pela construção de congressos como este para fortalecer esta categoria. A gente precisa construir ainda mais pontes entre nós.”
MNU (Movimento Negro Unificado) – Felipe Teixeira
“É muito importante que esse debate aconteça numa organização que representa os servidores da Justiça, saúdo essa iniciativa de juntar todas essas lutas (dos movimentos sociais), pois há muitas desigualdades e contradições.(…) É na justiça a mediação de todos esses conflitos e muitas vezes é na justiça que a gente consegue fazer muitas vezes a efetivação dos direitos”
Coordenador Geral da Fenajud – Alexandre Santos
“Fenajud está encampando lutas muito importantes, como a luta pela aprovação da PEC 555 que pretende corrigir uma das maiores injustiças com nossos aposentados e pensionistas”, lutamos contra a PEC 32, reforma administrativa, utilizada o tempo inteiro como instrumento de chantagem. Aproximamos a Fenajud dos movimentos libertários, da luta antirracista, da luta contra o machismo, contra a LGBTfobia”
A radicalidade de sonhar outros mundos
Em formato de roda de conversa, o primeiro dia de atividades do VII ConsejuRS contou com a presença da jornalista Juliana Gonçalves, que também é mestra pela Universidade de São Paulo (USP), cuja obra é o tema do VII ConsejuRS e também o tema da primeira mesa do evento: “Bem Viver e a radicalidade de sonhar outros mundos”.
O primeiro debate teve a participação da representante do Coletivo pela Igualdade Racial do Sindjus (CIRS) Silvia Vasconcellos, e do diretor de Comunicação do Sindicato, Marco Velleda, que destacou a escolha pelo formato do evento a fim de propiciar um espaço de partilha: “A roda de conversa é um exemplo que nós buscamos na nossa ancestralidade”, ressaltou. Silvia Vasconcellos exaltou a pluralidade do encontro e a participação de representantes de diversos segmentos da sociedade.
No início de sua explanação, a jornalista Juliana Gonçalves, autora do artigo que nomeou o tema do Conseju, parabenizou o Sindjus pela “ousadia de colocar o Bem Viver no centro dos debates desta categoria”.
Militante do movimento de mulheres negras, Juliana foi uma das idealizadoras e organizadoras da Marcha de Mulheres Negras Contra o racismo, contra a violência e pelo Bem Viver. O tema norteia sua jornada acadêmica; sua dissertação de mestrado, que traz a lógica do bem viver a partir da perspectiva de mulheres negras, é “fruto de uma luta coletiva” e parte de uma pesquisa realizada em conjunto com mulheres negras de várias regiões do Brasil.
“O Bem Viver tem correspondência com toda comunidade tradicional que tem o coletivo como forma de organização”, aponta. Neste sentido, Juliana apresentou pontos do conceito andino de Bem Viver e suas conexões com a filosofia africana representadada pela Sankofa, adinkra africano segundo o qual “nunca é tarde voltar ao passado e pegar algo importante que ficou”. No Brasil, destaca, ele nasce de “diálogo profundo entre os povos indígenas e africanos”.
É um conceito que surge de experiências concretas e representa uma revolta contra a individualidade. “Bem viver tem a ver com prática, com território, com chão, tem a ver com práticas ancestrais e revolucionárias de sobrevivência”; trazendo aprendizados fincados em práticas comunitárias, abarca a relação entre pessoas, a natureza, e relações econômicas fora da lógica do capitalismo (uma realidade recente e devastadora).
É importante frisar que, por se opor à individualidade, o bem viver não pode ser confundido com “bem estar”. Juliana apontou fatores estruturais que integram a lógica do Bem Viver, segundo a qual a natureza é entendida como parte da comunidade, como sujeito de direitos e que não pode estar sujeita à mercantilização, mas tratada numa relação não opressora e não exploratória. Em contraponto ao capitalismo e ao desenvolvimentismo, promove a valorização dos saberes ancestrais de caráter comunitário e encara a diversidade enquanto riqueza civilizatória.
Neste sentido, essa perspectiva das mulheres negras sobre o Bem Viver na prática (tema da dissertação de Juliana), agrega ainda mais elementos aos conceitos já existentes na ótica andina, como o direito à terra, à cidade, ao território, soberania e segurança alimentar. Representa, assim, “um grito revolucionário pela vida na dimensão de garantir às pessoas negras não apenas sobrevivência, mas direito de viver com prosperidade e abundância”.
Em sua conclusão, a jornalista defendeu que para atingir uma mudança efetiva na realidade, é necessário que o debate leve à reflexão e à prática política revolucionária.
A atividade foi encerrada com a leitura de um trecho do poema “África” de Oliveira Silveira pelo diretor Marco Velleda: “Ás vezes te sinto como avó/ outra vezes te sinto como mãe./Quando te sinto como neto/ me sinto como sou. Quando te sinto como filho/ não estou me sentindo bem eu, / estou me sentindo aquele / que arrancaram de dentro de ti”.
O ConsejuRS segue nesta sexta-feira (28) com rodas de conversa para aprofundar a discussão sobre o Bem Viver em torno de eixos temáticos ao longo do dia.
Galeria de fotos: