Atividade contou com as falas da jornalista Jeanice Dias Ramos (Sindjors) e do publicitário baiano Caique Oliveira (Fenajud)
Aconteceu nesta terça-feira (23) uma Roda de Conversa com o tema da Comunicação Antirracista. A atividade foi promovida pelo Sindicato dos Servidores da Justiça do Estado do RS (Sindjus/RS) e foi realizada no auditório do Sindicaixa, em Porto Alegre.
A roda de conversa integra as atividades do Novembro Antirracista Unificado, organizado por várias entidades sindicais, além de fazer parte do 2° encontro do Coletivo pela Igualdade Racial do Sindjus (CIRS).
A atividade contou com as falas da jornalista Jeanice Dias Ramos, representando o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e do publicitário e social mídia Caique Oliveira, responsável pelas redes sociais da Federação Nacional dos Trabalhadores do Judiciário (Fenajud).
A mediação foi realizada por Luis Mendes, integrante do Sindjus e do CIRS. Ele ressaltou a parceria com o Sindicaixa por ceder o espaço, a presença de diversos sindicatos e de companheiros do judiciário de diversas regiões do estado e até mesmo de outras regiões do país.
“O movimento sindical esse ano fez o debate e resolvemos fazer o Novembro Negro de forma unificada”, disse Luis, ressaltando a importância do evento em um contexto de luta contra o fascismo.
Ele ressaltou também que o fascismo tem como principal vítima as pessoas negras, especialmente as mulheres, tendo como faces mais perversas o genocídio e o encarceramento da população negra. Nesse sentido, o combate à esse sistema passa pelo debate sobre a comunicação.
Também reafirmou que o evento proposto no formato de roda de conversa remete à mística da ancestralidade africana.
Desafios do combate ao racismo na comunicação
Na sua fala, a jornalista Jeanice Dias ressaltou algumas experiências enquanto militante sindical. Antes de tratar sobre o tema da luta antirracista na comunicação atual, a jornalista retomou um pouco do histórico de luta nessa área no RS.
“Eu comecei a militar no movimento negro em 1971. Nós tivemos uma experiência muito importante, em termos de imprensa negra, que foi a revista Tição“, recordou.
Jeanice disse que o impresso que marcou época e era voltado para os temas da população negra. “Ia além daquele imediatismo de jornal, a gente questionava alguns problemas que ainda hoje são atuais e não superados, isso entre 1977 e 1978.”
Afirmou ainda que, recentemente, um grupo de jornalistas negros começou a se organizar para resgatar o Tição. O plano é fazer o relançamento em março de 2023.
Relembrou algumas figuras que passaram pelo jornal, alguns já falecidos, afirmando que novos jornalistas estão juntando ao novo projeto. “Importante termos o viés da juventude, estamos condicionados ao passado, mas temos que dar uma volta para enxergar o futuro. O Tição tem esse papel, sempre foi vanguardista”, afirmou.
Avançando no tempo, citou a formação do Núcleo de Jornalistas Afro-brasileiros no Sindjors, o qual ajudou a fundar e atua até hoje. Explicou que o Núcleo foi organizado durante o primeiro Fórum Social Mundial. “Haviam negros se organizando no Fórum, mas eles não tinham estrutura. Eles entraram em contato com o Sindicato e partir dai a gente sedimentou o Núcleo em 2001.”
Segundo Jeanice, atualmente existem sete sindicatos pelo Brasil com núcleos semelhantes ou com Comissão pela Igualdade Racial.
Nesse sentido, afirma que a organização dos jornalistas negros avançou. Citou também a formação da Comissão Nacional dos Jornalistas pela Igualdade Racial (Conajira), que já realizou duas conferências.
“Já é possível ter parâmetros sobre como o racismo age nacionalmente. A partir das conferências é possível tirar consensos para agir”, disse.
Jornalistas negros isolados em redações
A jornalista afirmou que, a partir da experiência do sindicato, se constatou que existem muitas resistências aos jornalistas negros dentro das redações.
“Os jornalistas negros têm dificuldade em se dedicar à causa negra, é uma forma de evoluir [dentro da empresa]. É um ‘apagamento’ que acontece”, avaliou.
Citou que os sindicatos estão se esforçando para mobilizar cada vez mais os jornalistas novos, recém formados, pois é difícil mudar a mentalidade dos profissionais mais velhos.
“Fizemos um projeto chamado ‘Jornalize-se’, para atender os estagiários de jornalismo, que, em breve, serão formados. Com eles que a gente debate muito melhor do que um jornalista que está trabalhado nas redações”, pontuou.
Transversalizar o conhecimento
Como exemplos de como as práticas racistas durante muito tempo foram reproduzidas na mídia sem serem questionadas, a jornalista citou o caso dos veículos que convidam negros para falar sobre temas como o carnaval mas chamam brancos para falar sobre economia ou política.
“Nós temos que mudar. É necessário transversalizar o conhecimento, o negro é capaz de falar sobre tudo”, protestou.
Jeanice disse também que as redações e locais de trabalho são muito estanques. “Enquanto Núcleo a gente questiona, mas coisas avançam aos poucos.”
Saúde mental dos negros e a comunicação
Para a jornalista, o esforço de resistência e transformação também se estabelece no plano da saúde mental. “A chibata agora é eletrônica, é moral. Existem os maus tratos psicológicos.”
Afirmou que as pressões sobre os trabalhadores, de um modo geral, tendem a ser mais pesadas para a população negra, principalmente sobre as mulheres. Comentários sobre o desempenho profissional ou até mesmo sobre a aparência podem ganhar contornos de pressões que são difíceis de lidar.
“A autoestima precisa ser trabalhada, como profissional e nas relações humanas. Não cuidar disso pode desencadear para uma depressão. Em muitas redações a gente percebe que a pressão de ser bem sucedido é pior para os negros”, reforçou Jeanice.
Pondera que as reflexões que faz são do ponto de vista de uma jornalista, mas que podem ser mais ou menos abrangentes para outras categorias de trabalhadores
“O racismo é perverso, maltrata e leva a adoecer. Por isso precisamos montar coletivos, organizar”, assegura.
Disse que o Sindicato dos Jornalistas tem recebido cada vez mais denúncias de assédio contra pessoas negras, de forma que se empenha em realizar um trabalho primeiro de ouvir, mas também de encaminhar para o cuidado.
Por fim, convidou que cada vez mais jornalistas negros e jovens participem da organização do sindicato, pois, segundo ela, é necessário “passar o bastão” adiante para a luta continuar.
Papéis no antirracismo
Por sua vez, o publicitário e gestor de mídias sociais Caique Oliveira começou sua fala ressaltando que sua presença na atividade não se deve à uma ocasião de lazer, mas sim como parte de um esforço para combater o racismo.
“Eu vim para Porto Alegre pois é preciso que pessoas da minha cor se machuquem diariamente para tentar mudar o mundo. Essa fala de hoje é para falar de antirracismo. Para isso, a gente precisa falar de racismo. Uma pessoa preta ter que falar sobre a própria dor, é também se machucar”, disse.
“Essa não é uma viagem de férias. Eu preciso que os meus filhos não sintam a dor que hoje eu sinto. Eu passo por isso em nome de uma pessoa que ainda nem nasceu e pelas pessoas que passaram por isso antes de mim”, completou.
Qual o lugar de cada um na luta
Segundo Caique, construir uma comunicação antirracista precisa partir do ponto de entender qual lugar e qual o nível de responsabilidade de cada pessoa no mundo. Para o publicitário, é mais fácil pensar primeiro em mudar o mundo e o comportamento das pessoas. Porém, é necessário que antes os indivíduos olhem para dentro de si.
“É preciso que você faça a sua parte e entenda em que ponto você é racista, pois, se você é branco, você necessariamente é racista. Temos que partir daí”, afirmou.
O publicitário asseverou que existem intensidades e formas diferentes de manifestar o racismo, mas que não existe a menor possibilidade de uma pessoa branca não ser racista, pois isto não é uma escolha.
“Temos que partir desse ponto para poder mudar. Só assim que a gente pode entender que, quando uma pessoa te diz que algo foi racista, ela está querendo criar uma ponte. Ela quer que fosse entenda para não fazer de novo”, argumentou.
Caique afirmou ainda que levantar esse pontos e debater o racismo não é uma obrigação somente dele, pois é necessário que os brancos se confrontem com as próprias atitudes.
“Para você ser antirracista de fato, para deixar de ser racista, é necessário ceder. Você está disposto a ceder a um mundo que foi pensado para o branco? Para o racismo acabar você vai ter que abrir mão de muita coisa. Me dizer que não vai me chamar de macaco é muito fácil”, disse.
Caique questionou como os brancos se sentem confortáveis em retirar as chances de ocupar espaços e oportunidades dos negros. “Eu acho difícil que a minha geração veja a superação disso, pois você vai precisar fazer sua parte, eu sozinho não resolvo o problema. Quando se percebe o quão profundo o racismo é, mais difícil fica resolver o problema. Uma hora, ele chega em você.”
Para construir uma comunicação antirracista, o publicitário afirmou que não é necessário saber tudo, mas que os brancos precisam estar dispostos a aprender.
“Se você olha para seu local de trabalho e ninguém é preto, o antirracismo não vai se estabelecer ali. Se você fechou as portas para um contraponto, todo mundo vai ter uma mente branca, por mais disposto que você esteja a aprender.”
Estratégias racistas de comunicação
Exemplificando alguns exemplos práticos de manifestações explicitamente racistas na comunicação atual, o publicitário apresentou o exemplo da visita de Lula, então candidato à presidência, ao Complexo do Alemão, na cidade do Rio de Janeiro.
Na ocasião, seu adversário Jair Bolsonaro repetiu diversas vezes a mentira de que a visita de Lula teria sido organizada por traficantes e bandidos. A visita, na verdade, foi organizada pelo comunicador Renê Silva, responsável pelo portal Voz das Comunidades.
Caíque afirmou que as imagens geradas pela vista de Lula ao Complexo eram muito fortes e que seus adversários, então, recorreram à tática racista de distorcer a narrativa afirmando que aquelas pessoas que acompanhavam Lula eram bandidos. “É assim que os racistas trabalham. É assim que essa comunicação se estabelece e reverbera.”
Apenas contratar não resolve o problema
O publicitário ainda ressaltou que apenas ter pessoas negras nas equipes de comunicação não basta para se construir uma comunicação antirracista. “Você coloca a pessoa numa reunião, mas ela não pode falar. Você está disposto a ouvir, ou quer apenas que ela concorde?”, refletiu.
Sendo minoria em um espaço de trabalho, é praticamente certo que os trabalhadores negros vivenciem experiências de racismo.
Caique relatou uma experiência de trabalho em que foi questionado por um chefe se ele se sentia bem naquela empresa. Ao responder que se sentia acolhido por viver em um ambiente de trabalho racista, o publicitário recebeu como resposta que “esse negócio de racismo é um grande exagero”.
Ou seja, além de não terem espaço de fala, quando se abre esse espaço, muitas vezes isso acontece como uma espécie de obrigação, mas não como um real compromisso de mudança ou como uma legítima preocupação.
Por fim, Caique completou, direcionando aos ouvintes brancos da plateia, que “acabar com o racismo, não é tarefa minha, é obrigação de vocês”.